Toda empresa tem, ou já teve, alguém que não pode ser questionado. O “intocável”. Aquele que, em teoria, conhece tudo, mas na prática trava o crescimento da equipe, mina o clima e manipula percepções. Ele não é o mais produtivo, nem o mais exemplar, mas é o que mais sabe onde cada informação está. E é exatamente por isso que ninguém o confronta. Aos olhos da liderança, ele parece indispensável; aos olhos do time, é o principal motivo de exaustão. Esse tipo de profissional transforma informações em poder e, aos poucos, transforma a empresa em refém de si mesma.

Como profissional de marketing, vejo todos os dias o quanto as empresas esperam que o marketing, e o RH, resolvam tudo: da reputação à motivação das pessoas. É comum que o marketing seja chamado para criar campanhas de engajamento, reconhecimento e pertencimento, mas muitas vezes ele entra no jogo quando o problema já está em outro lugar. Porque por melhor que seja a campanha, ninguém permanece onde a liderança não sustenta o que o marketing promete. Quando existe um “intocável” comandando processos-chave, nenhuma narrativa externa é capaz de compensar a incoerência interna. A experiência de quem trabalha na empresa sempre fala mais alto do que qualquer campanha. E a empresa que não enxerga isso cedo, paga caro depois.
Trabalhar no marketing de uma consultoria de recrutamento e seleção estratégica me faz ver de perto o quanto esse tipo de situação é comum. Em conversas com clientes e durante os processos seletivos, é impressionante como histórias assim se repetem. Donos e líderes comentam que “ninguém fica” em determinada área, ou que “o time não se encaixa”. E quando se aprofunda um pouco mais, o problema não é o mercado, é o ambiente interno. Quase sempre existe alguém que domina processos, mas bloqueia a evolução de todos ao redor. O nome técnico é knowledge hoarding, e estudos da Harvard Business Review mostram que colaboradores assim causam perdas equivalentes a 30% da produtividade do time. São os chamados rock stars tóxicos, entregam o suficiente para justificar a permanência, mas o custo invisível que geram em clima, engajamento e inovação é muito maior do que o benefício aparente. O que começa como dependência termina como sabotagem institucional.
Sob a ótica jurídica, o comportamento do “intocável” viola princípios básicos da relação de trabalho. O art. 422 do Código Civil impõe o dever de boa-fé objetiva, exigindo lealdade e cooperação mútua na execução dos contratos. Já o art. 482 da CLT prevê mau procedimento, insubordinação e desídia como motivos de justa causa. Quando um colaborador usa informação como arma, manipula colegas ou impede o fluxo regular da empresa, ele fere diretamente esses princípios. A omissão da liderança, nesse contexto, não é neutralidade, é conivência jurídica e estratégica.
O impacto vai além do jurídico. O “rock star tóxico” destrói o que o marketing tenta construir: a confiança na marca. Porque não há reputação externa que sobreviva à incoerência interna. E isso explica por que empresas com excelentes produtos e campanhas não conseguem reter pessoas boas. Quem é talentoso não fica onde precisa pedir permissão para existir.
O fim de ano é o momento perfeito para reavaliar isso.
Antes de traçar metas e aprovar orçamentos, vale um diagnóstico simples: quem hoje dentro da sua empresa centraliza informações a ponto de torná-la refém? E o que você está deixando de decidir por medo de perdê-lo? A resposta a essas perguntas diz mais sobre a saúde da sua cultura do que qualquer indicador de marketing.
Dica direta para líderes:
não idolatre o “intocável”. Ele não é prova de estabilidade, é o sintoma mais claro da fragilidade da sua gestão. Liderar é garantir que o conhecimento circule, não que se concentre. Quando a informação fica presa em uma única pessoa, o time perde velocidade, autonomia e visão de futuro. É nesse ponto que muitos líderes confundem lealdade com dependência. A verdadeira força de uma marca está em equipes que evoluem juntas, trocam, ensinam e constroem repertório coletivo. Esse é o momento de olhar para dentro e entender como a gestão da informação acontece na sua empresa, se ela depende de pessoas ou de processos, se há ferramentas e tecnologias (inclusive inteligência artificial) ajudando a transformar dados em conhecimento acessível. Informação mal gerida é risco estratégico. E para quem atua no marketing, esse é um ponto de atenção essencial: engajamento e cultura não se sustentam em campanhas isoladas, mas em comunicação que circula e conecta. Comunicação não é custo, é investimento em inteligência coletiva.
Referências
- Housman, M.; Minor, D. Toxic Workers. Harvard Business School Working Paper, 2015.
- Purushothaman, D.; Stromberg, L. Leaders, Stop Rewarding Toxic Rock Stars. Harvard Business Review, 2022.
- Hirsch, A. How to Stop Employees from Hoarding Knowledge. SHRM, 2022.
- Código Civil, Lei 10.406/2002, art. 422 — princípio da boa-fé objetiva.
- Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), art. 482 — hipóteses de rescisão por justa causa.